domingo, 8 de outubro de 2023

                                        Para Maria

O poema que faltou no livro


O homem que toca violão
já toca cansado, as cordas
dos anos não lembram as notas.
Mas Maria Guerreira não.

A cega de pote na mão
ausentou-se da esquina.
Moeda ao mar, perdida.
Mas Maria da Luta não.

O Portuga sem balcão
fechou-se em seu bigode.
Voltou a um Porto que já foge.
Mas Maria Augusta não.

Para ti nunca há saudade
nem dor, gripe ou despedida.
Ao fim, o livro se inicia.
Ao início, memória trazes.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

A leitura e a geladeira


É cada vez mais comum escutar das pessoas esta frase horripilante, e cada vez mais em tom hostil: 

- EU NÃO GOSTO DE LER!

Encaro a pessoa com tranquilidade e digo: 

- Você gosta de geladeira?

A pessoa fica me olhando sem entender. E aí explico:

- Se você estivesse numa casa nova, ainda vazia, você compraria uma geladeira primeiro ou uma televisão?

A pessoa, ao julgar minha pergunta idiota, responde como se tudo fosse muito óbvio:

- Claro que uma geladeira.

 E aí chego onde queria:

- Então, ler é como ter uma geladeira. Todo mundo tem que ter uma em casa. Se você não tem uma geladeira, vai ter que pedir para os vizinhos guardarem sua comida. Imagina o constrangimento, a encheção de saco!

E a pessoa, até então na sua suposta superioridade, pergunta:

- Mas o que isso tem a ver?

Concluo:

- Tudo. A pessoa que não lê, porque não gosta, tem que pedir para o vizinho ler algum contrato relativamente simples porque não entende. Tem que pedir para o vizinho ler algum informe, seja do patrão, do condomínio, da comunidade, do bairro, do prefeito ou do presidente, porque não entende. Tem que pedir ao outro para escrever uma carta ou email, porque não sabe, e não quer escrever "errado", acha feio. Tem que pedir para o vizinho ler uma notícia no jornal, porque não entendeu direito - a não ser aqueles de pior qualidade, e mesmo assim.... Tem que pedir para o vizinho mexer no celular ou computador porque, ainda que sejam tecnologias que ofereçam dificuldades, tudo vem escrito. Não entende o que acontece com o país, com o mundo, com a política. É enganada por qualquer discurso e muitas vezes até mesmo pelo vizinho. Enfim, a pessoa que não lê, por preguiça, é aquela que toca na porta do vizinho dito inteligente, tirando-o dos seus afazeres, enchendo seu saco, para "encarecidamente" pedir algo a toda hora. E ainda tem que confiar nele. Portanto, ler com eficiência, coisa que só se aprende na prática, é ter uma geladeira. E, para isso, não precisa ser uma leitura estilo Frost Free, pois basta um pouquinho por dia. Mas, se quiser ter hábito de leitura intensa e variada, adquirindo senso crítico e visão de mundo, terá uma casa montada para, confortavelmente, viver da maneira mais autossufuciente possível. Entendeu? Ou quer por escrito?...

Mas nosso amigo, ainda em sua caverna:

- Não quero não. Eu não gosto de ler.


Ivo de Souza 


domingo, 3 de setembro de 2023

Hoje soube seu nome


Saimon.
Morreu nas pistas
do Aterro do Flamengo
antes que a manhã se completasse.
Não ia aos atos de LGBTQIA+
Não era preto
nem pertencia à tribo alguma. 
Como cama, arrumava uns papelões
à frente de uma loja de grife.
Comia as pizzas que 
a classe média
deixava-lhe 
em gesto purificador.
Tomava umas cachacinhas,
furtava as guimbas do chão.
Não incomodava ninguém.
Nem a manhã, 
que se completou
sem nenhum incidente maior,
segundo os jornais 
e os pássaros,
cuja migração não pode ser interrompida.
Apenas um colaborador chegou tarde.
Mas, numa retórica que supera o susto
e numa gramática que supera o humano erro,
convenceu o patrão de que não tivera culpa.
- E ainda o capô amassado!
Por pouco não foi mandado embora.
Que alívio! 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

                                                       para Carlos Tonelli

Pois é, Carlos...


Carlos passava pela sala da professora Marta e sempre olhava no pequeno vidro da porta vários volumes de Marx, Engels, Trotsky, Lênin, Bukarin e muito mais. Tudo em cima da mesa dela. Como se descobriu com fortes convicções políticas, resolveu sair do curso de Administração de Empresas, prestar outro vestibular para História e se dedicar irrestritamente à causa operária. Afinal, não era empresário, apenas funcionário de um balcão de papelaria.

Frequentou as aulas com afinco, sempre fiel aos pensamentos da professora, permanecendo até depois para colher o máximo de informações que podia. E ela sempre dizia, em tom de confidência, que havia setores na universidade que se travestia de esquerda, mas não era esquerda nenhuma:

- São apenas, Carlos, um agrupamento que, sob o nome de defesa de mulheres, índios, negros, gays, travestis e muitos maconheiros, que apenas advogam por causa própria. As causas são até importantes e pode ter até alguns integrantes desses grupos que também defendam luta proletariada, e quando esses surgem, claro, a luta é unida, mas isso é excessão... Em geral, companheiro, há pouca luta de classe aqui, mas quem se engaja sem medo é um guerreiro - e gesticulava com os braços para o alto.

Ao término do curso tinha que apresentar um trabalho. Viu um vídeo que, dentre outros, Marta dizia ser mais importante e fez um trabalho justamente sobre a classe operária brasileira e ainda conclamando sobre a vital importância da integração de grupos identitários.

Ela olhou, olhou:

- Tá tudo muito bagunçado. Ter que organizar isso aí - e citou uma gama de teóricos que comentavam a respeito.

Carlos se convenceu. Realmente poderia melhorar. Na aula seguinte trouxe o trabalho. Ela avaliou:

- Tem muito teórico. Está confundindo a metodologia. Tira alguns nomes.

"Ela tem razão, ela tem razão", assim saiu Carlos da aula pensativo. Mas sem reclamar. Sim, sim. Teria que modificá-lo. "Viva a luta operária!" - exclamou consigo. E voltou na aula seguinte. E a professora:

- Mas esse sociólogo, apesar de ser de esquerda, já caiu por terra. Não dá mais para defender isso. Tira.

Foi para casa, dessa vez já um pouco cansado. Mas buscou energia e virou a noite na reelaboração do seu texto. No dia seguinte apresentou-o. E ela:

- É... mas não é bem assim. Tem muito grupo de minorias que defende a esquerda. Você viu o vídeo errado, tem que ver aquele outro que te falei. Não é esse não, é aquele outro. Esse sim vai na questão.

Por pouco Carlos não demonstrou certa irritabilidade na frente dela, mas como era funcionário de uma papelaria, cujo o patrão era exigente, já estava acostumado com certas coisas. Engoliu a seco, mas demorou uns dois dias para pegar o escrito de novo. Nas vésperas do término do curso, respirou fundo e foi lá. Apesar de uma recente conversão ao ateísmo, pensou recolhido: "Seja que Deus quiser!"

Ela olhou, mas mal terminou o primeiro parágrafo, disse:

- Pois é, Carlos... Está tudo errado. A esquerda agora não tem mais como pauta principal os trabalhadores, não dá mais para falar em proletários. Do jeito que era não dá. Tem que ser assim, entendeu? Melhor. E, além disso, agora as negociações são todas em tom de amistosidade com os empresários, sobretudo os estrangeiros, que estão prestes a trazer vários negócios lucrativos para o país. Estamos salvos, a economia está salva, o país está salvo. Aliás, você viu o discurso do presidente ontem?

Não se sabe a nota de Carlos. Ele sumiu. Na verdade, comenta-se que sua casa desabou numa chuva de verão e, como não tinha onde ficar, passou a morar na papelaria do patrão em troca de faxinas à noite. Uma ex-colega de curso disse que, ao encontrá-lo na rua, não estava feliz nem triste, mas que era muito grato ao seu chefe. "Um homem e tanto!"- reverenciou, segundo a moça. E que ainda emendou na despedida:

- A professora estava certa. O importante é a amistosidade...

terça-feira, 18 de julho de 2023

 

Pautas contemporâneas: paradoxos e redirecionamento 


As colocações que se seguem não anulam a extrema importância e validade do movimentos identitários, mas abrem parêntesis.

Florestan Fernandes, sociólogo que já foi weberiano mas se consagrou como marxista, fez vasto estudo sobre os negros ("A integração do negro na sociedade de classes") e vai perceber que, além de uma sociedade capitalista de classe (ou seja, que já promove uma exclusão), há um segundo tipo de exclusão: a social dos negros. Com isso rechaça a ideia de Gilberto Freire de democracia racial, da perfeita harmonia entre o senhor de engenho e seus agregados e/ou escravos.

Como se vê, as coisas não são tão pacíficas e, advertimos, nem tão simples como se vão colocar neste texto. De qualquer forma, a dose dupla aqui não é de uma branquinha direto do alambique entre o senhor e o negro - com direito a tapinhas nas costas. É do sistema econômico e o antagonismo nele indissociado que precede e ratifica exclusão dos afro-brasileiros. Sabemos que proprietários dos meio de produção e trabalhadores formam um fosso intransponível no sistema capitalista. Se antes a oposição era nobre e burgueses, desde a Revolução Francesa, com a ascenção burguesa, um novo antagonismo se formou com a massa de proletariados. E aqui no Brasil com outras configurações, já que temos uma burguesia dependente e que adveio do setor agrário, que traz uma contradição em si mesma (ver também "Dialética da colonização", Alfredo Bosi).

Para atenuar a desvantagem histórica dos negros (que foram declinados numa tentativa de eugenização do país ao importarmos trabalhadores europeus) e também de outras minorias, financiam-se políticas de ajustes sociais como as afirmativas (bolsas, cotas em universidades etc). Porém, são políticas que não veem (se veem só escamoteiam) o problema em sua infraestrutura, na sua base econômica, uma vez que é notório que a acumulação de renda de uma pequena minoria de burgueses aumenta cada vez mais. Em qualquer pesquisa vamos constatar que apenas um punhado dos mais ricos detém metade de toda riqueza nacional. Percebe-se nitidamente que a base de nossa pirâmide é acentuadamente larga. Fenômeno que se verifica em países liberais, atenuando apenas o fato de alguns já terem alcançado o processo de acumulação, permitindo mesmo aos pobres algum bem material. (Ainda assim lembrem-se de que até Biden injetou dinheiro na economia pós-pandemia.) Entretanto, tal desigualdade no Brasil acentua-se - o que esperamos que mude com a atual reforma tributária.

Da década de 60 para cá entrou em pauta as questões identitárias. Mulheres exigiam liberdade e fazer o que bem entendessem do seu corpo. Os negros reivindicavam o uso do espaço público em comum com o branco. Os gays suas dignidades enquanto seres humanos e direitos civis. Esses movimentos foram fortes nos EUA. Talvez por isso o culturalismo, que hoje vemos aqui com algum atraso, é, na verdade, uma ideia importada. E talvez por isso também que Derrida, com seus significantes infinitos, e Foucault (este já tendo participado do PC e com boas ideias sobre a sociedade de poder, mas resvalando no estruturalismo) são tão bem recebidos nas universidades americanas. Não negligenciando méritos e virtuosismo, esses pensadores desconstroem a noção de progressão histórica, por conseguinte de dialética, colocam tudo na superfície, jogo de discurso, linguagem, interpretação - apesar de serem importantes  para validade e caracterização de alguns objetos a ser estudado, como a literatura, na qual, para sair de seu estado cru, as contradições, o jogo semântico e interpretativo são fundamentais. Assim, por exemplo, ao pregar uma estética da existência em sua fase final - vinculado à uma ideia estóica de "cuidar de si" e de "parresia" -, Foucault dá diretrizes de como não se submeter às regras de poder centralizador, mas esvazia o sentido de  engajamento social de massa e evita, desse modo, o assunto econômico diretamente, que poderia causar desconforto a alguns setores do sistema, dando, nesse modo de operar, a impressão de que, junto com Fukuyama, "agenciasse" (termo predileto) a vitória do capitalismo, ainda que com algumas ressalvas. Acrescenta-se ainda que, dada a época já afastada de suas produções (é só ver todo o otimismo de Pierre Levy em seu "Cybercultura", ou Guattari quando diz que a tecnologia vai liberar o trabalho para cultura em "As três ecologias"), esses pensadores não contaram com o poder das grandes corporações tecnológicas, que hoje têm bancos de dados maior do que sistemas de inteligência de qualquer país, ou seja, livra-se do estado, mas se cai em outra subjugação totalitária (cf.: "Capitalismo tardio e os fins do sono", de Jonathan Crary), por mais que traga algumas vantagens. Aliás, é esse controle que Lyotard acertadamente previu.

Não custa nada, entretanto, baixar a guarda e vermos, sem a dialética do conflito, como as coisas se dariam em outro prisma. Vermos, levantando hipóteses e ensaiando uma política de conciliação, se as contradições desapareceriam. Desse modo, se o objetivo é enxergar as sociedades sem as condições evolutivas, ignorando teorias como do livro "O processo civizatório", de Darcy Ribeiro, abandonar o projeto desenvolvimentista, ou fomentar um desenvolvimento sustentável (de difícil aplicação em modelos de sociedades consumistas), revelar e preservar outro tipos de saberes (ainda que de forma híbrida) como o dos indígenas, que podem se destacar como aliados da preservação da natureza; se há de se por um freio para que não avancemos para a devastação ecológica, o perigo de guerras, evidentemente que há de se pensar no campo e numa extração natural consciente, de maneira realmente sustentável, e nunca voltada aos seus especuladores, mas sim na população atrelada a essas atividades, há de se distribuir as riquezas, fazer reforma agrária, pensar em controle de natalidade, estimular cooperativas, mudar os valores de consumo e produção, já que muitos produtos saem programados para terem pouco tempo de vida, fomentando o mercado e os lixões. Para tudo isso, os países periféricos poderiam engendrar um novo tipo de pensamento e utilizar toda sua potência de reservas ecológicas para poderem barganhar um redirecionamento da sociedade capitalista, ou mesmo, se não for auspicioso demais, pensar numa maior socialização da vida - e que isso não signifique homogeneização do mundo, pois particularidades, identidades próprias são sempre saudáveis e importantes. O problema é que, sem o desenvolvimento ou um consenso distributivo, vamos estar sempre atrelados a uma divisão internacional de trabalho, até aqui totalmente desigual e perversa. Pergunta-se: como fazer com que os países desenvolvidos tenham consciência, de modo pacífico, de uma redefinição da estrutura econômica?

Não seguindo programas objetivos e em outros moldes, essa redefinição não só econômica, mas principalmente cultural e política, foi intuída (ainda sem a visão das consequências de diluição pós-moderna e o controle da informatização) por minorias na década de 60. Neste período, ainda que haja em alguns grupos consciência de classe vinculada a lutas de emancipação (Pateras Negras, por exemplo), a revolta se dava contra uma sociedade massificada, padronizada. A guerra na Coreia e no Vietnã recrutava jovens para a morte. A ameaça nuclear era iminente. O setor de serviços deixava para trás o setor industrial com seu fordismo, o intercâmbio da comunicação aumentava, a informática dava passos largos e em breve já penetrava mas casas das pessoas, o estado de bem estar social ainda dava o luxo do lazer, da música, do rock.

Ocorre, porém, que, com a desilusão das grandes narrativas ideológicas (marxismo x capitalismo), o mundo aos poucos foi se transformando mais individualista, o que se acentuou com o neoliberalismo a partir dos anos 80 e sem o contraponto socialista, onde os sindicatos e a consciência de classe dos trabalhadores se esfumaram por completo, trazendo sérios danos nas negociações por melhores salários. As grandes questões da nação se transformaram em questões localizadas, de pequenos grupos: imigrantes, negros, mulheres, gays, cada um com suas causas. O projeto de uma nação se transformou no projeto do seu quintal.

Mas a indústria, agora com linha de produção mais flexibilizada, percebeu isso. O rock de Woodstock  logo caiu nas graças das gravadoras, institucionalizou-se. Se antes havia, por exemplo, apenas uma linha de xampu, agora havia para loiras, negras, latinas e asiáticas. Personalizava-se de acordo com o grupo social a que se pertencia. Mas era - e ainda é - uma diversificação do mercado ilusória, uma vez que as regras de consumo não podia mudar, variam-se os produtos, mas não se varia o costume, integrado à cultura, de consumidor obstinado, de não se ter outro estilo de vida que não fosse pautado pelo lazer no shopping. E de fazer a camisa indiana ou a calça boca de sino produtos de grifes caras.

Pergunta-se então. A necessidade, vista até por setores conservadores da direita liberal, de incluir a diversidade teria um aspecto de puro altruísmo e humanidade ou seria para aliciar consumidores de todas as espécies e fazer uma cooptação supostamente democrática? Como fica as questões das bolhas nas redes sociais que monetizam com os vários grupos, indo das esquerdas radicais ao fascismo? Ainda que haja, em que medida pode promover uma verdadeira diminuição de desigualdade social se a distribuição de renda é tão precária e as leis trabalhistas enfraquecem cada vez mais, aliada a uma perspectiva de automação de serviços e consequente desemprego? Até que ponto pode promover uma integração plural o estímulo para se identificar com um grupo, não criando acirramentos com outros? (É bom observar que, se por um lado, há valorização da liberdade individual,  do outro crescem no mundo grupos fundamentalistas, nacionalismos fechados, ainda que por vezes artificiais, e fascismos.) E, participando de um grupo, não criaria um certo comodismo, fechando-se em um mundo, reconhecido por seus pares, mas não almejando uma qualidade de vida material melhor? Não corre o risco de o culturalismo virar fetichismo e estar exposto nas vitrines como um mercado exótico, fruto apenas de modismos? Até que ponto o circuito de pequenos agrupamentos, não ignorando a possibilidade de cooperativas, impede uma aliança maior com sua classe, ou categoria num ambiente de trabalho por exemplo, para, unidos, reivindicar melhorias?

Pois bem. O fato é que a eclosão de movimentos identitários com justas reivindicações, a meu ver, estão eclipsando, ao menos em parte, outras questões também importantes como a luta de classe, que caiu em descrédito, mas em época de franca miséria (é só andar pelas ruas) e acentuada desigualdade social (ainda que pese mais aos negros) é imprescindível que se pense nas questões dos trabalhadores, em políticas de emprego, reestruturação econômica e de classe - o que parece ser, neste último aspecto, bem solidificada nas elites (inclusive fascistas-empresariais, é só verificar os movimentos de massa operados recentemente). Mas para isso é necessário que a via seja de mão dupla. Tanto no nível de infraestrutura como de superestrutura. Falta talvez hoje em dia o espírito de "mãos dadas" de Drummond, reunir os cacos e começar de novo. E, se neste cânone literário houve contradições entre família e socialismo, conforme atestado por Silviano Santiago em "Vale quanto pesa", ou em Adélia Prado entre catolicismo e os desejos mundanos, ou em tantos outros, é porque muitas vezes o ser humano carrega em si suas perplexidades, paradoxos e desafios. Marx só construiu sua obra através do auxílio de Hegel, Adam Smith e Ricardo. Como uma vez me advertiu uma professora nos tempos da minha faculdade (Heloisa Caldas) e confirmou-me Eduardo Coutinho (UFF), os pensamentos se acrescentam e se somam, mesmo que hajam cortes epistemológicos e diferenças. Mas isso já é outro assunto.


Prof.: Ivo de Souza

sábado, 8 de abril de 2023

Baile, lençol e pérolas


Pois a estas horas da noite estico junto aos lençóis os diálogos, aliso com as mãos, mas enruga do outro lado, tento esticar ponta a ponta, mas os braços são curtos e, me arrepio, desde este dia, apenas dois, e, quanto maior o tecido, maior a cama (bem maior agora!), porém, maior que tudo, a noite, que me espera para tudo fluir, para tudo disparar, para tudo girar como um carrossel, cavalos com asas, bailarinas flutuantes, saias lançadas ao vento, ao vento pétalas, sem pouso certo, todos os lugares em um só, um entrando dentro do outro, num infinito para dentro, que cresce íntimo, espiral, redemoinho, vertigens, lembranças, cores e sons, maior a cama de casal, bem maior o mundo, uma via láctea inteira, por trás matéria escura se esconde em dimensões inimagináveis, se uma ponta do lençol cobre a outra descobre, vou do outro lado, e começa tudo de novo, numa eterna operação solitária de puxa e estica, de estica e puxa, e nessa luta embaralho vozes, diálogos interrompidos, que ficaram a meio caminho, o por ser dito mas não se disse, aliso as vozes, aplaino-as ao lençol, tento acalmá-las, fazer com que caibam em um discurso de sentido, e assim folheio páginas de dicionário como num voo aleatório, deslizando, as folhas perfilam como baralhos nos meus dedos, as palavras explodem e não há conexão, me concentro, e tento me deter em uma (era essa, essa mesma!), mas sigo para outra e para outra, esboço uma frase, encontro-a e ela se desfaz, mudo de ideia, reúno outras frases, talvez um texto, falta a coragem, deveria ter dito isso mas amanhã eu digo, sim, terei coragem, e concordo comigo mesmo dando tapinhas sobre a cama, afastando a poeira, talvez o medo, a incerteza, num gesto definitivo, acreditando me convencer, confirmando um discurso que deveria existir, hoje não mas amanhã, mais oportuno, mais certo de si, firme como um monumento de bronze, de um mártir, discursos invencíveis, eternos, grandiosos, ok, mas acalme-se, rapaz, há tempo, enquanto isso ensaio, estico as palavras de algodão e poliéster, e mesmo que possuam elástico nas bordas, fazem-se justas e inflexíveis, que relutam em deitar-se em toda sua liberdade e franqueza na cama, em alerta, resistentes, buscando a melhor forma, o melhor jeito, buscando o limite da tensão, sem ofensas, claro, mas justas demais, ao lado, sentado numa poltrona, o travesseiro rechonchudo e solitário - o outro ela levara às pressas! - aguarda toda essa minha operação, como quem observa uma discussão, palitando os dentes depois da janta, e não quer se meter, como se tomasse um partido mas não diz nada, prefere esperar o desenlace da história, dos acontecimentos, sem pressa, na poltrona, barriga estufada para cima, ombros caídos, acomodado em pensamentos de plumas, indiferente, preguiçoso e disperso demais para tomar uma atitude, só espera que uma mão o alcance e lhe dê o destino da cama, já o lençol, o das palavras, que sobraram da luta, dispersas como as contas de um cordão que se partiu e rolam na rua, umas ao meio fio, à beira do precipício, ao esgoto, outras ao asfalto, prensadas por borrachas de pneus que derretem em asfaltos, outras ao canteiro de plantas sem nomes, apenas verdes, estoicamente esperando uma enxada que as arranquem, outras para não se sabe onde, impossível reuní-las novamente, sintaxe perdida, interrompida abruptamente naquela discussão que não se disse tudo, e por isso não se tem ainda a sensação de liberdade, é preciso botar os demônios para fora, não é assim mesmo que se diz, mas como se nem tudo é certo ainda, se as premissas fazem-se sem conclusão, ou se as há, não haveria uma ditadura, uma imposição da premissa maior, todo homem é mortal, lição que aprendemos juntos na escola, mas naquela época achava-me imortal, todo jovem é imortal, imaginava como um potro que já nasce em pé, depois o amor, nosso amor é imortal, ela dizia, e eu repetia beijando-a, cheio de tesão, sim, nosso amor é imortal, se nos amamos, somos imortais, mas nada disso, falso silogismo, e nos cálculos talvez, todo homem é mortal, eu sou homem, logo sou mortal, repito agora na meia luz do quarto, abajur ao canto, uma silhueta que me vigia, recriminando-me, mas não tive culpa, na cômoda fotos que não tive coragem de tirar, alguns papéis, compromissos não cumpridos, muita coisa, confesso, a meio caminho, adiantamentos, amanhã farei, amanhã vejo isso, e o amanhã não existe mais, e, entre todas as coisas, a aliança, deixada no móvel, refulge no seu cálculo deliberado, provoca, se insinua, cega-me os olhos, mas sem conseguir desviar-me, e a luz no seu silêncio agudo, inquietante, presença de vozes não ouvidas, mas que agora reverberam, cintilam como uma estrela que sempre esteve ali, a essa hora da noite, mas não reparamos, luz única, num céu de escuridão, e me faz perder os sentidos, o desejo de pegá-la, levá-la a seus dedos, como primeiramente naquele dia, se lembra, todos emocionados, uns já não acreditavam, outros com inveja, maldiziam, mas passamos por tudo, passamos por todos, contudo agora, com que cara, onde esconder as vistas, e elas ardem, ensaiam um choro, a aliança ofusca, tento desviar num ato de desespero, num ato covarde, de quem foge para sobreviver, de quem corre para se lançar ao abismo, mundo sem chão, e travo as mandíbulas misterioso, luto comigo mesmo, luto solitário com o lençol, que resiste, que não tem braços, que me acusa, que reúne as pérolas, as palavras dispersas, colocando-as num saco, numa trouxa cara que vai embora sem dizer adeus, o fim por si mesmo, mas ainda assim não deveria ter feito aquilo, as contas do colar, não fui eu, se juras servem para alguma coisa, não fui eu que arranquei, era só tocá-la no pescoço, trazê-la para mim, num gesto impensado, rápido demais talvez, eu juro, era só evitar algo maior, de desespero insensato da parte dela, era só silenciar, mas não contava com os gestos, gestos dizem mais que palavras, e gestos não pensados arranham, foi tudo rápido, um dedo que prendeu no colar, juro, não era intenção, e as contas voaram, pessoas pararam para ver, ela gritou, não tive culpa, era apenas acalmar, trazê-la para mim, talvez falar algo aos ouvidos, e depois sim, depois diria o que tinha pra dizer de verdade, sem adiar, sem falsas promessas, era questão de tempo, mas as contas caíram, mesmo que eu as tenha dado, com meu suor, não justifica nada, sabemos disso, elas rolaram como palavras dispersas ao ar, num vendaval, que não sobra nada, tudo se desprende do chão, areias, raízes, cercados, assoalhos, paredes, casas inteiras (e o próprio verde precipita seu momento), tudo que fora construído pelo homem vai ao ar, em segundos, anos, décadas de esforços se desfazem, e passam a habitar a ruína da memória, turbilhão, calafrios, fantasmas, o brilho do anel, o ouro que ficou pra trás, fujo, fujo, olho ao lado, as pernas fatais de uma bailarina, me lembro, um único incidente, era para ninguém saber, adiaria, quem sabe esquecer, e agora aquelas pernas lisas novamente, de polimento vil, sustentadas pelos pés, numa caixa pequena, sobre o móvel, prontas para entrar em cena, no tablado das estrelas, pernas de tesouras pontiagudas, dançando para mim, estavam lá, instigando-me, mandando-me estalos secos, beijos, faíscas fatais, não resisto, pego-as suavemente nos dedos, danço com ela pelo quarto, rodopio, sustento-a sob a luz, vejo sua aura resplandescente, o fio fino, ignoro o perigo, ensaio como seria, ensaio várias vezes, para não ter erro, não ter medo na hora exata, o espetáculo é caro, não vamos decepcionar -  isso não! - , deito-me com ela, sem cerimônias, afinal, um flerte de anos a fio, e o fio da lâmina - da vida ou da morte - em excitação, espera de anos até o desenlace final, os corpos em contato, entrecortados por gemidos e palavras sem territórios, sem gramáticas que as sustentem, só pulsão, emaranhadas aos retalhos do lençol, sob o peso do amor que se diz eterno mas fugaz, abandonam-se a si mesmas, e ficamos à deriva no meio de um oceano encrespado e incerto. Deito-me com ela enquanto o horizonte costura a manhã.


quarta-feira, 29 de março de 2023

Revisão 

Sento num parque para escrever um poema.
Carmem Miranda, onde brincava quando criança.
Descubro que a peça estava escrita há muito
                                                                              [tempo.
Entre as folhas secas que estalam sob os pés,
descortino a terra e reviso a úmida lembrança.